A judicialização da saúde suplementar no Brasil tem gerado debates sobre os limites contratuais e legais da cobertura, especialmente de medicamentos de uso domiciliar, como os à base de canabidiol. A controvérsia se intensifica diante de fármacos que não constam no rol da Agência Nacional de Saúde Suplementar e não possuem registro sanitário, cuja importação é autorizada excepcionalmente pela Anvisa.
Para compreender os limites legais à cobertura, é essencial analisar o conteúdo do § 13 do artigo 10 da Lei nº 9.656/1998, introduzido pela Lei nº 14.454/2022.
O Superior Tribunal de Justiça, no Tema nº 990 (REsp nº 1.726.563/SP), reconheceu a licitude da recusa de custeio de medicamentos não registrados pela Anvisa. Em hipóteses envolvendo produtos à base de canabidiol, contudo, a corte tem promovido o distinguishing, considerando que a autorização excepcional da importação revela análise técnica da segurança e eficácia do produto, ainda que não substitua o registro (REsp 2.193.073/SP, relator: ministro Villas Bôas Cueva).
Apesar desse abrandamento jurisprudencial em casos específicos, o STJ tem reforçado que medicamentos à base de canabidiol, quando prescritos para uso domiciliar, estão sujeitos às exclusões legais de cobertura, salvo se enquadrados nas hipóteses do artigo 10, § 13, da Lei nº 9.656/1998.
Com efeito, o § 13, incluído pela Lei nº 14.454/2022, estabelece que procedimentos ou tratamentos fora do rol da ANS devem ser autorizados quando houver comprovação de eficácia com base em evidência científica ou recomendação de órgãos técnicos. No entanto, a norma não revoga as hipóteses de exclusão previstas no caput do artigo 10, especialmente a do inciso VI, que exclui o fornecimento de medicamentos para tratamento domiciliar.
E é nesse sentido que vem se firmando a jurisprudência do STJ, ao reforçar os limites legais e contratuais da cobertura assistencial, destacando que a regra do artigo 10, § 13, da Lei 9.656/1998, introduzido pela Lei nº 14.454/2022, não revoga as exclusões previstas no caput do mesmo artigo, sem autorizar seu afastamento automático.
Essa diretriz, que já constava em precedentes da 3ª Turma do STJ, foi reafirmada no recente julgamento unânime dos Recursos Especiais 2.181.464/RJ, 2.182.344/RJ e 2.200.785/SP, todos de relatoria da Ministra Nancy Andrighi, ressaltando a importância de interpretação sistemática que preserve a segurança jurídica e o equilíbrio atuarial do setor:
“A mesma lei não pode excluir da operadora uma obrigação (art. 10, VI) e, depois, impô-la o seu cumprimento (art. 10, § 13). Voltando a Carlos Maximiliano, essas duas regras devem ser interpretadas como “partes de um só todo, destinadas a complementarem-se mutuamente” (obra citada, p. 111).
Dessa forma, salvo nas hipóteses estabelecidas na lei, no contrato ou em norma regulamentar, não pode a operadora ser obrigada à cobertura de medicamento de uso domiciliar, ainda que preenchidos os requisitos do § 13 do art. 10 da Lei 9.656/1998.
Aliás, não fosse assim, estariam as operadoras obrigadas a prestar assistência farmacológica a um significativo número de beneficiários, portadores de doenças crônicas, para cujo tratamento há, no mercado, medicamentos de uso domiciliar de comprovada eficácia, nos moldes do que exige o inciso I do § 13 do art. 10 da Lei 9.656/1998.
Assim, conclui-se que, exceto nas hipóteses expressamente previstas na lei, contrato ou regulamentação, as operadoras de planos de saúde não estão obrigadas a fornecer medicamentos para uso domiciliar, ainda que sejam atendidos os requisitos do § 13 do art. 10 da Lei 9.656/1998.” (REsp 2.171.743/MG)
Essa leitura sistemática, portanto, impõe o reconhecimento de que a norma do § 13 não tem o condão de revogar, por via reflexa, as exclusões expressamente previstas no artigo 10 da Lei nº 9.656/1998, inclusive aqueles para uso domiciliar, como previsto no inciso IV, excepcionando apenas os antineoplásicos orais e correlacionados; os medicamentos administrados em regime de medicação assistida (home care); e, aqueles incluídos no rol da ANS com previsão específica para uso domiciliar.
ssa delimitação foi reiterada em precedentes como o REsp 2.193.073/SP, confirmando que medicamentos prescritos para uso fora de ambiente hospitalar, ainda que eficazes, não impõem obrigação de custeio às operadoras se não se enquadrarem nas exceções previstas em lei.
O STJ também estabeleceu uma distinção crucial entre o tratamento domiciliar simples — caracterizado pela automedicação do paciente — e o home care, este compreendido como uma internação domiciliar supervisionada, que serve como substituição à hospitalar.
Essa distinção é crucial para definir a natureza jurídica da obrigação de cobertura. Quando o paciente está em regime de home care, o tratamento é equiparado à internação hospitalar, tornando-se, assim, de cobertura obrigatória, desde que sejam observados os requisitos legais e sanitários pertinentes.
Esse entendimento é reforçado por julgados que tratam da distinção entre medicação assistida e uso doméstico autoadministrado. Um marco relevante foi o julgamento do AgInt no REsp 1.873.491/RJ, no qual o ministro Villas Bôas Cueva expôs:
“A medicação intravenosa ou injetável que necessite de supervisão direta de profissional habilitado em saúde não é considerada como tratamento domiciliar (é de uso ambulatorial ou espécie de medicação assistida).”
Essa diretriz jurisprudencial esclarece que, na situação de home care, concedida em substituição à internação hospitalar, a medicação prescrita deve ser coberta pelo plano de saúde, mesmo que seja uma solução oral. Isso porque o cenário não configura mero “uso domiciliar”, mas sim substituição ao ambiente hospitalar, onde o fármaco seria, de qualquer forma, custeado como medicação assistida.
A distinção técnica entre automedicação e internação domiciliar evita a judicialização de pleitos que, embora sensíveis, não encontram respaldo contratual nem fundamento clínico assistido.
O STJ reafirmou esse entendimento no julgamento do AREsp 2.494.054/SP, ao declarar que “A medicação intravenosa ou injetável que necessite de supervisão direta de profissional habilitado em saúde não é considerada como tratamento domiciliar, mas sim de uso ambulatorial ou espécie de medicação assistida”.
Essa classificação permanece válida mesmo quando o medicamento é administrado no domicílio, desde que sua aplicação exija a presença de um profissional técnico. Nesses casos, o que define o regime do tratamento é a natureza da administração — sua complexidade e a necessidade de supervisão — e não apenas o local físico.
Ainda que preenchidos os requisitos do § 13 do artigo 10, a ausência de supervisão técnica afasta a possibilidade de enquadramento como medicação assistida, mantendo a aplicação da exclusão prevista no caput e afasta a exclusão prevista no inciso VI do mesmo dispositivo para o “tratamento domiciliar”.
Em síntese, a jurisprudência tem consistentemente adotado um critério funcional: quando a administração de um medicamento demanda atuação técnica ou monitoramento profissional contínuo, mesmo que ocorra no ambiente doméstico, o tratamento transcende a categoria de “uso domiciliar”.
Esse entendimento é vital para evitar riscos à segurança do paciente e para garantir a coerência e a segurança jurídica com a legislação vigente, protegendo a sustentabilidade e a previsibilidade das coberturas dos planos de saúde.
A ANS, por sua vez, possui uma posição clara e reiterada quanto à delimitação das coberturas obrigatórias pelos planos de saúde, especialmente no que se refere à assistência domiciliar e ao fornecimento de medicamentos, no sentido de que a Lei nº 9.656/1998 não inclui a assistência à saúde no ambiente domiciliar entre as coberturas obrigatórias, excetuando-se apenas o fornecimento de bolsas de colostomia, ileostomia, urostomia, sonda vesical de demora e coletor de urina com conector, conforme o artigo 10-B.
O fornecimento de medicamentos domiciliares é obrigatório apenas nos casos expressos: antineoplásicos orais, medicação assistida (home care) ou itens do Rol da ANS. No home care, equiparado à internação, o custeio é devido se observadas as indicações da Anvisa e da bula, conforme o artigo 12 da Lei nº 9.656/1998.
A ANS, no Parecer Técnico nº 40/2024 (2/9/2024), reafirmou que não há obrigatoriedade de cobertura por planos de saúde para medicamentos à base de cannabis usados fora de ambiente assistido. O parecer, que substitui o de 2022, considera a RN nº 465/2021 e a RDC nº 660/2022, da Anvisa. Conforme o artigo 10, VI, da Lei nº 9.656/1998, medicamentos domiciliares não são de cobertura obrigatória, exceto antineoplásicos orais e adjuvantes oncológicos expressamente previstos no rol. A ANS distingue entre: (1) produtos com registro sanitário, que podem ser cobertos em hospital ou home care se contratualmente previstos; e (2) produtos sem registro, apenas com autorização de importação, que não têm cobertura obrigatória, mesmo sob internação.
O parecer é categórico ao declarar que: “Produtos autorizados exclusivamente para importação excepcional pela Anvisa não integram a lista de coberturas obrigatórias do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde, mesmo quando utilizados em regime de internação hospitalar ou domiciliar assistido (home care), por não estarem devidamente registrados”.
O posicionamento da ANS decorre de análise técnico-científica, com base em critérios de segurança, eficácia e custo-efetividade da ATS. Mesmo com registro na Anvisa, o uso domiciliar sem supervisão não gera cobertura obrigatória. A inclusão no rol exige avaliação criteriosa, sustentada em evidência e impacto setorial.
Por fim, o parecer reconhece que as operadoras podem, de forma opcional e ampliada, oferecer a cobertura de tais medicamentos. Contudo, essa oferta voluntária não altera o regime jurídico da cobertura mínima obrigatória prevista na lei e na regulação setorial.
Este parecer técnico da ANS reforça uma leitura sistemática que indica que o § 13 do artigo 10 da Lei nº 9.656/1998 não revoga ou invalida as hipóteses de exclusão do caput, especialmente no que diz respeito a tratamentos domiciliares não supervisionados ou a produtos sem registro sanitário definitivo.
Desse modo, a leitura sistemática da legislação e da diretriz técnica da ANS reforça que o § 13 da Lei nº 9.656/1998 não revoga, restringe ou amplia as hipóteses de exclusão previamente definidas no caput do artigo 10, devendo ser aplicado com cautela e dentro dos limites regulatórios.
Para além da técnica normativa e da jurisprudência consolidada, o debate sobre a obrigatoriedade de custeio de medicamentos à base de canabidiol — especialmente aqueles sem registro sanitário ou fora do rol da ANS — exige uma leitura que também considere fundamentos constitucionais. Entre eles, destaca-se o princípio da precaução, que oferece base normativa relevante para orientar a interpretação das normas no âmbito da saúde suplementar.
De origem ambiental e já aplicado no campo sanitário, o princípio da precaução estabelece que, na ausência de certeza científica sobre a segurança de um produto ou conduta, deve-se adotar a opção mais protetiva para a coletividade. No direito da saúde, isso se traduz na necessidade de deferência a critérios técnicos regulatórios, como os da Anvisa e da ANS, sobretudo quando estão em jogo medicamentos com uso ainda incipiente ou de risco potencial não totalmente conhecido.
A jurisprudência do STJ alinha-se a uma leitura precaucional do direito à saúde, como no Tema 6 do STF: ‘É lícita a recusa do Estado em fornecer medicamento experimental ou sem registro na Anvisa, salvo se comprovadas, de forma fundamentada, a ineficácia dos fármacos fornecidos pelo SUS e a existência de pedido de registro no Brasil.
Ainda que o Tema 6 tenha sido fixado no âmbito do SUS, sua ratio decidendi é plenamente compatível com o setor suplementar, pois ambas as esferas dependem da atuação técnica das agências reguladoras e da segurança científica das terapias.
No âmbito da saúde suplementar, o princípio da precaução fortalece o papel das agências técnicas na definição de coberturas obrigatórias, evitando que decisões judiciais ampliem o escopo contratual e assistencial sem respaldo científico ou regulatório consolidado. Permite-se, assim, equilibrar a proteção do beneficiário individual com a preservação do modelo assistencial coletivo e da sustentabilidade do sistema.
Fernando Aith e Dirce Guilhem (2019) defendem que o princípio da precaução deve orientar decisões judiciais e regulatórias em saúde, para evitar a judicialização de terapias sem eficácia comprovada e proteger o paciente e o sistema de riscos terapêuticos e econômicos.
A negativa de cobertura de medicamentos à base de canabidiol, nos casos em que não há registro sanitário e o uso se dá fora de ambiente assistido, encontra respaldo técnico, normativo e jurisprudencial, sendo compatível com os limites legais da saúde suplementar. Longe de significar uma limitação arbitrária ao direito à saúde, trata-se de uma aplicação coerente dos critérios de legalidade, racionalidade assistencial e segurança regulatória.
Nesse contexto, é digno de destaque o papel do STJ, que tem construído uma jurisprudência consistente, técnica e sensível à complexidade que envolve o equilíbrio entre inovação terapêutica, regulação sanitária e contratos privados de saúde. Ao adotar uma leitura sistemática do artigo 10 da Lei nº 9.656/1998, o STJ confere previsibilidade às relações assistenciais e contribui para a estabilidade do setor, respeitando os limites das obrigações contratuais sem desproteger os beneficiários.
Essa compreensão também encontra amparo em doutrina contemporânea. Daniel Wang alerta que decisões judiciais sem critérios técnicos podem comprometer a justiça distributiva e os objetivos do direito à saúde. Gisele Citadin destaca que o Judiciário deve dialogar com a regulação e reconhecer a ANS como instância técnica legítima para definir coberturas obrigatórias.
Ao privilegiar critérios como o registro sanitário, a supervisão profissional e a inclusão no rol da ANS, a regulação assegura o funcionamento ordenado do sistema suplementar e protege diretamente o beneficiário. Essa diretriz garante que apenas terapias com respaldo em evidência científica e segurança clínica tenham cobertura obrigatória, afastando soluções sem eficácia comprovada ou sem parâmetros regulatórios mínimos.
A consolidação desse entendimento — que articula o princípio da precaução, a legalidade contratual e a racionalidade técnica — representa um avanço relevante na interpretação do direito à saúde em sua dimensão coletiva e sustentável. Com isso, promove-se maior segurança jurídica nas relações assistenciais e reforça-se que decisões sobre cobertura sigam critérios técnicos consistentes e alinhados à regulação vigente.
Fonte: CONJUR. Leia matéria completa.